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"Violência psicológica abre portas para outros crimes"

O não incentivo à autonomia e o isolamento são as primeiras etapas para que o idoso se torne alvo dos mais diversos tipos de abusos, alerta a delegada Ângela Santos. Condição de vulnerabilidade geralmente é criada por familiares

02/06/2025. Guilherme Felix CB/DA Press. Pod envelhecer. A convidada é a delegada Ângela Santos, da Decrin. Ela falará sobre crimes contra os idosos.

Na bancada Sibele Negromonte e Carmen Souza. -  (crédito: Guilherme Felix/CB/D.A Press)
02/06/2025. Guilherme Felix CB/DA Press. Pod envelhecer. A convidada é a delegada Ângela Santos, da Decrin. Ela falará sobre crimes contra os idosos. Na bancada Sibele Negromonte e Carmen Souza. - (crédito: Guilherme Felix/CB/D.A Press)

Os maus-tratos são a principal violência praticada contra idosos no Distrito Federal. E começam de uma forma nem sempre percebida com facilidade. "Primeiro, vem a exclusão, essa pessoa idosa é tirada do convívio social, vai para um cantinho, como se não fosse dar trabalho. Daqui a pouco, ela já está mais excluída e, com isso, vai ficando cada vez mais adoecida, mais depressiva, mais encolhida (...), não tem autonomia do próprio corpo, do próprio dinheiro", resume a delegada Ângela Santos, em entrevista ao podEnvelhecer.

 Entre 2022 e 2024, as denúncias de abandono, maus-tratos e falta de assistência no DF aumentaram 68%, de 7.693 para 12.932, conforme dados do governo federal. Segundo a titular da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin), os familiares são os principais autores dos abusos, praticados em todos os cantos da cidade. Às jornalistas Carmen Souza e Sibele Negromonte (foto), a delegada ensina como se proteger contra essas e outras violências, indica onde procurar ajuda e reforça a urgência de se estabelecer uma convivência mais harmônica entre as gerações. 

Há um senso comum de que os idosos são as principais vítimas dos golpes virtuais e financeiros. É o que se observa na delegacia?

Esse é um ponto interessante para se discutir, porque, no Brasil, a gente tem essa ideia de binaridade. Ou a pessoa idosa está num lugar de invisibilidade ou está num lugar de muito bibelô, digamos assim, como se ela não tivesse condição de ter autonomia. O que percebemos na delegacia é que tem, sim, muitos golpes praticados contra as pessoas idosas, mas também tem muitos golpes praticados contra todas as pessoas da sociedade. Todos nós estamos suscetíveis a sermos vítimas de golpes. Se a gente não ficar atento, clica num link que não pode e cai num golpe. É claro que há muitas pessoas idosas que estão, sim, numa situação de vulnerabilidade, que talvez ficaram sem contato com a tecnologia. Até mesmo por causa de uma sociedade que não liga, não cuida, não inclui as pessoas idosas, elas não têm o à educação digital. São vários pontos, mas eu não considero que as pessoas idosas estão mais suscetíveis. 

O que um idoso deve fazer para não cair nesses golpes?

Primeiro, é estar sempre atento. A gente tem muitos golpes. Por exemplo, o banco, em regra, não faz contato dizendo que teve uma compra que não foi aprovada, que tentaram clonar o cartão. Então, se recebeu essa ligação, desligue, faça contato com o seu gerente, procure uma outra pessoa para conversar. Pare um pouquinho, fale o que está acontecendo, que seja com o filho, a esposa, o esposo, o neto… Você já vai sair, de certa forma, das garras da sedução desse criminoso, porque o estelionatário é muito sedutor. Não clicar em links é outra dica. Também  não se deve digitar nem fornecer senha. Os mesmos cuidados que a gente tem no mundo físico precisa ter no mundo virtual.

Ainda há uma sensação de que a internet é terra de ninguém, o que faz com que as vítimas não procurem a delegacia. Isso acontece no DF?

Sim, é essa sensação: "Não vou denunciar, não vai dar em nada, vou ar pelo constrangimento". Primeiro, independentemente se vai chegar ou não à autoria, ao registrar a ocorrência, a pessoa vai indicar os dados. Se não registra, são cifras ocultas. Então, aquele crime fica acontecendo e a gente não sabe onde está acontecendo, de que forma está acontecendo, qual é o novo golpe. O Estado precisa que as pessoas denunciem para que se gerem estatísticas e para que políticas públicas sejam feitas para combater esse tipo de crime. O segundo ponto é que o crime virtual, assim como o físico, deixa um rastro. E o papel da polícia é seguir o rastro do crime. E a gente consegue chegar. Aqui no DF, temos a Decrin, que é uma delegacia que trabalha na perspectiva interseccional, com raça, religião, (população) LGBT, pessoa idosa e pessoa com deficiência. Então, nós temos uma delegacia capacitada para acolher as pessoas, porque, muitas vezes, a pessoa idosa chega muito fragilizada, com vergonha. Fizemos o primeiro protocolo no Brasil de atendimento à população idosa. Temos todo um formulário, um o a o, para atender essa vítima, para que ela se sinta confortável e confiante no trabalho da polícia. Então, procure a Decrim ou qualquer delegacia do DF. Tem também uma sessão chamada Sessão de Polícia Comunitária, que trabalha com todos os crimes envolvendo pessoas em situação de vulnerabilidade, o  Disque Denúncia e a delegacia eletrônica. Ou seja, são vários canais para denúncia, não dá para falar que não fez porque era muito difícil.

Como é feito esse atendimento na Decrin?

Nossos pilares são a escuta ativa — muitas vezes, a vítima chega e entra em catarse, diz que não vai denunciar o filho, entra em choque, e você precisa ter preparo para ouví-la — e o não julgamento. Isso é o acolhimento, que não é necessariamente um abraço, é oferecer uma água, um café. Tem todo esse atendimento humanizado e também essa perspectiva interseccional, porque, quando o policial tem a capacidade de perceber que aquela vítima idosa também tem uma deficiência e é uma mulher negra, por exemplo, ele consegue entender o quanto é mais pesado para essa pessoa fazer uma denúncia. Isso faz com que ela se sinta confiante e confortável. Depois, a gente usa as técnicas para que ela nos relate a violência.

Qual é a principal violência praticada contra o idoso do DF?

São maus-tratos, de forma generalizada, que começam com a violência psicológica, que, no meu entender, é uma das violências mais graves. A violência psicológica contra idosos abre portas para outros crimes, abala toda a autoestima de qualquer pessoa, principalmente da idosa. Nós temos uma sociedade que não incentiva o envelhecimento, e isso faz com que ninguém converse sobre isso, vira um tabu. Quando você se depara com um idoso dentro da sua casa, você não foi preparado, não teve conversa sobre isso, sobre o respeito, a autonomia dessa pessoa. Aí, podem começar as pequenas violências. Primeiro, vem a exclusão, essa pessoa idosa é tirada daquele convívio social, ela vai para um cantinho, como se não fosse dar trabalho. Daqui a pouco, ela já está mais excluída e, com isso, vai ficando cada vez mais adoecida, mais depressiva, mais encolhida naquele lugar. E, claro, ela vai estar afastada de uma inclusão digital também. Daí,vêm os golpes e os maus-tratos, já que ela não tem autonomia do próprio corpo, do próprio dinheiro. Então, outras violências se instalam a partir do momento em que a pessoa idosa não diz o que fazer com o seu dinheiro, o que fazer com o seu corpo, o que fazer com a sua casa.

E quem mais pratica essa violência?

No Mapa da Violência no DF, o maior índice de violência no âmbito doméstico contra as pessoas idosas é praticado por filhos; depois netos, cônjuges e, só depois, o cuidador. A gente tem uma ideia fantasiosa que são os cuidadores ou as ILPIs (Instituições de Longa Permanência para Idosos) que mais maltratam as pessoas idosas, e não são. E aí entra uma outra questão: como é que o idoso denuncia o próprio cuidador? Você vai denunciar um familiar, um irmão, um primo? Nesse ponto, a gente entra com a denúncia anônima, que tem salvado vidas. Aqui no DF, temos o 197, mas nacionalmente, você pode denunciar pelo Disque 100, que chega em todos os lugares. Não é clichê, nós já salvamos várias vidas (a partir) de denúncias anônimas. Vítimas em cárcere privado, em situação deplorável, de abandono, de negligência, de maus-tratos mesmo. 

Aquele que agride o idoso também pode ser o único cuidador. No caso de uma prisão, quais os es oferecidos à vítima?

A nossa investigação é protetiva, porque o nosso foco é na vítima, não no autor. A gente pode prender — e quer prender e vai prender — o autor, mas o nosso foco é que a vítima não se sinta revitimizada, que sinta confiança no trabalho da polícia, do Judiciário, do Ministério Público, de todos os órgãos que formam uma grande rede. Não tem como trabalhar no combate à violência contra a pessoa idosa sem ter uma rede de proteção. Se você tira esse agressor, precisa entrar um Estado forte para dar todo o apoio de que a vítima necessita. Mas, em se tratando de violência contra a pessoa idosa, é diferente da violência contra a mulher, em que o Estado acaba incentivando o empoderamento para que ela rompa o laço com o agressor e siga a vida. Tem ex-marido, mas não tem ex-filho, não tem ex-neto. Muitas vezes, quando a gente chega ao local, não é só o crime que está acontecendo, é uma questão assistencial, um filho que está sem emprego, às vezes, o próprio filho que cuida tem uma deficiência, um transtorno mental. Então, é preciso que o Estado entre, todas as redes vão atuar conjuntamente. Aqui no DF, a gente tem conseguido fazer isso. Agora, se for realmente o caso de uma medida protetiva e a vítima não tem para onde ir, ela vai ter que ser assistida na ILPI.

A gente tem visto muita violência contra a mulher. No caso das pessoas idosas, as mulheres também são as principais vítimas?

É parecido com o que ocorre com as não idosas, porque a gente vive numa sociedade patriarcal. Então, é ensinado para o menino, que ele vai crescer, ser o homenzinho da casa, cuidar da mamãe quando o papai não está. E ele internaliza isso. Aí, o homem, às vezes, um cuidador, se sente no direito de decidir sobre o que a pessoa idosa vai fazer, o que vai comer, não pergunta o que ela quer.

Não há educação ou debate sobre o estatuto que existe há muito tempo e poderia quebrar esse ciclo…

Nós temos um projeto na Decrin que se chama Decrin vai às escolas. É muito importante você fazer esse trabalho nas escolas para que as novas gerações possam aprender essa convivência intergeracional, o quanto isso é rico. A gente precisa dessa educação, falar sempre sobre isso, não só nesse lugar do crime, mas de autonomia da pessoa idosa. Para que, diante de um crime, seja de golpes, seja dentro de casa, ela seja capaz de dar um basta, de falar: "Não, me respeite, respeite o meu espaço, eu sou uma pessoa autônoma, eu vou decidir sobre a minha vida'. 

Incluindo a questão patrimonial…

Temos muitos funcionários públicos aposentados que, muitas vezes, a família inteira depende dessa renda. Então, é importante que essa pessoa tenha lucidez para dizer "o dinheiro é meu, vocês têm que seguir as minhas regras'. A violência patrimonial acontece tanto nas classes mais favorecidas financeiramente quanto nas menos favorecidas. Inclusive, a gente tem muito dessa violência em bairros nobres aqui do DF.

 

PS
postado em 09/06/2025 06:00
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