Artigo

Considerações distributivas sobre a política fiscal

A teoria do bem-estar estruturada sob a hipótese de que uma alocação eficiente melhora a posição de um agente na sociedade, preservando a posição dos demais, se esvazia das questões distributivas que dela resultam

"Em se tratando de finanças públicas, é impossível se ater às questões fiscais sem lidar com os efeitos distributivos" - (crédito: kleber sales)

BENITO SALOMÃO, professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal de Uberlândia (MG)

"A essência da teoria de bem-estar moderna tem sido definir eficiência econômica em
termos que excluem considerações distributivas" (Musgrave & Musgrave, 1989, p. 10)

A sentença foi extraída do livro Public Finance in Theory and Practice, de Richard & Peggy Musgrave. O economista alemão, professor de universidades como Princeton e Harvard, possui reconhecido legado na área de finanças públicas. O trecho é uma clara crítica à construção do pensamento econômico e suas implicações. Em suma, a teoria do bem-estar estruturada sob a hipótese de que uma alocação eficiente melhora a posição de um agente na sociedade, preservando a posição dos demais, se esvazia das questões distributivas que dela resultam.

Musgrave concorda que o que se entende como uma "distribuição justa" depende de concepções subjetivas. Temas que a teoria econômica foi deixando de enfrentar, enquanto se ocupava na construção de modelos ótimos. Em muitos casos, como o da política monetária, considerações distributivas envolvendo seu modo de operacionalização ficam implícitas, uma vez que o conhecimento disponível concorda quanto aos seus efeitos. Em termos práticos, apertos monetários que resultam de juros mais altos, provocam transferência de renda de devedores para credores, porém, não subir juros produzem custos distributivos associados à inflação que tendem a ser piores.

Em se tratando de finanças públicas, é impossível se ater às questões fiscais sem lidar com os efeitos distributivos. Primeiro, porque diferentemente da política monetária, cujo instrumento é único — a taxa de juros — no caso da política fiscal há dois instrumentos: impostos e gastos. As implicações distributivas de uma política são bastante distintas a depender do instrumento utilizado. Ademais, em se tratando da política fiscal, é difícil saber ex ante se os custos distributivos associados à sua execução serão maiores ou menores do que os custos da sua não execução.

Voltando ao trecho, ele é retirado de um contexto em que os autores discorrem sobre as funções das finanças públicas na sociedade: i) a função alocativa tem a ver com a cesta de bens públicos ofertados à população e o seu financiamento; ii) a função distributiva tenta aproximar a distribuição da riqueza ao que a sociedade considera "justa" e; iii) a função estabilizadora tem a ver com os objetivos da política macroeconômica que podem mudar ao longo do tempo. No Brasil, o debate fiscal é focado predominantemente nesta última função.

Tais elementos teóricos estão no cerne das descontinuidades envolvendo a política fiscal no Brasil experimentadas desde o colapso do antigo Regime de Metas Primárias (RMP). O Teto de Gastos, instituído em seguida, propunha estabilizar a relação dívida/PIB. A regra era baseada em um único instrumento, o gasto. Seu foco era exclusivamente a função estabilizadora e seu resultado foi relativamente bem-sucedido, uma vez que a dívida pública estabilizou. Porém, ignorou aspectos distributivos importantes, isso contribuiu para o seu colapso anos depois.

Em outras palavras, apesar dos objetivos estabilizadores associados ao Teto, esta regra trazia consigo exigências que se mostraram inviáveis ex post. Ou seja, o congelamento de gastos impunha uma agenda que contemplava: i) arrocho dos salários (inclusive o mínimo); ii) redução do escopo de atuação do Estado, particularmente do investimento público; iii) revisão de políticas sociais em áreas que se mostraram politicamente sensíveis. Essa agenda, coexistindo em um ambiente de alto desemprego, produziu efeitos distributivos consideráveis que resultaram na economia política da sua própria extinção. Em suma, o Teto, ainda hoje muito celebrado em alguns ambientes, escancarou a falha de coordenação entre as funções estabilizadora e distributiva das finanças públicas.

Com o seu colapso, surge o Novo Arcabouço Fiscal (NAF) com uma proposta mais flexível. Focado desta vez em ambos os instrumentos, tributos e gastos, o NAF traz consigo a necessidade implícita de coordenar as funções estabilizadora e distributiva. Apesar dos aspectos cíclicos favoráveis, a eficácia do NAF para lidar com o endividamento público tem sido contestada. Em que pese o considerável esforço fiscal observado no resultado primário, a dívida pública crescerá em todos os anos do NAF até 2026. Entretanto, sua estrutura flexível permitiu a reposição orçamentária de políticas públicas relevantes e uma melhora inequívoca de indicadores sociais.

A conclusão é que não existem regras sem custos. O conhecimento disponível até aqui não é conclusivo sobre a utilização de estruturas fiscais mais rígidas, como o Teto, ou flexíveis como no caso do NAF. Negligenciar aspectos distributivos das estruturas fiscais pode gerar consequências de economia política. Instituições fiscais que parecem produzir resultados sustentáveis em simulações econométricas, estão submetidas ao escrutínio de escolhas públicas e podem ser rejeitadas. Em sociedades democráticas, a população demanda, por via do voto, bens e serviços públicos que precisam ser financiados, este é o DNA do viés de deficit. Uma espécie de pecado original das democracias. Ao fim do dia, a gestão fiscal envolve um pouco de ciência e um pouco de arte, a fim de conciliar tais objetivos em instituições fiscais em evolução.

 


postado em 12/06/2025 06:03
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